sexta-feira, 27 de abril de 2012

O fogo do Cinema e do Amor

Saraceni, Cineasta do Brasil
Amir Labaki


Paulo Cezar Saraceni, um dos realizadores essenciais do Cinema Novo, que definiu como ninguém na fórmula “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, está morto. Em mais de meio século como diretor, rodou onze longas-metragens de ficção, incluindo o ainda comercialmente inédito “O Gerente”, e outros tantos documentários de várias durações. Legou-nos ainda o principal livro de memórias sobre o movimento, “Por Dentro do Cinema Novo – Minha Viagem” (Nova Fronteira, 398 páginas, 1993, esgotado).

Sempre me chamou a atenção o constraste entre o espírito dionisíaco de Saraceni e seu cinema da angústia. Bon vivant, futebolista na juventude, carnavalesco a vida toda, sedutor inveterado, amigo fidelíssimo -como destacou Ricardo Miranda no documentário que dedicou a ele (“A Etnografia da Amizade”, 2007)-, havia nele algo do Bruno de Vittorio Gassman em “Il Sorpasso” (Aquele que Sabe Viver, 1962), de Dino Risi. Sei que a Risi ele preferiria a referência a seu mestre maior, Roberto Rossellini, ou a seus colegas do período que passou na Centro Experimental de Cinema em Roma, de Bernardo Bertolucci a Marco Bellochio. Mas falo do homem, antes que da obra.

Seus filmes, por sua vez, parecem sempre girar, no campo superficial do entrecho, em torno de protagonistas fora de lugar, solitários, inconfortáveis com eles mesmo, como a assassina de “Porto de Caixas” (1962), o jornalista de “O Desafio” (1965), a desesperada Nina de “A Casa Assassinada” (1970), e seu “Anchieta, José do Brasil” (1977). Os registros, porém, variavam título após título, sobretudo na primeira e mais robusta década de sua obra ficcional.

Basta pensar nos ecos neo-realistas de “Porto das Caixas”, no pioneirismo urbano e reflexivo de “O Desafio”, na pegada onirica e operística de sua versão de Lúcio Cardoso em “A Casa Assassinada”. Na segunda metade de sua carreira, porém, os títulos se espaçam (“Ao Sul do Meu Corpo”, 1981, “Natal da Portela”, 1988, “O Viajante”, 1998), as dificuldades de produção se sucedem, e sua obra se mantém inquieta mas perde densidade.

No documentário Saraceni estreou ao lado de Mário Carneiro com um filme desbravador. Inspirado por Rossellini e Eisenstein, “Arraial do Cabo” (1959) é um ensaio sobre o embate entre a tradição e a modernidade a partir do impacto da chegada de uma indústria sobre uma colônia de pescadores a 25 km de Cabo Frio. O contraste entre a alegria popular ao ar livre e as angulosas estruturas fabris desafiava a rigidez tradicional do discurso documental brasileiro, a ponto de Glauber Rocha saudá-lo, ao lado de “Aruanda” de Linduarte Noronha, como “os primeiros sinais de vida” de nosso documentário. (Em “Xaréu – Memórias do Arraial”, lançado no É Tudo Verdade deste ano, Patrícia Ramos Pinto reconstitui os bastidores daquelas filmagens e investiga as mudanças no cotidiano dos moradores passado meio século). 

Igualmente precursor, mas das técnicas do cinema direto por aqui, foi o média-metragem “Integração Racial” (1964). Como um dos primeiros documentários nacionais a colher com um gravador Nagra o som direto de depoimentos (de brancos, negros, mulatos, italianos e japoneses), ninguém menos que Paulo Emílio Salles Gomes o saudaria por ter “retomado o falar no cinema brasileiro’’.

“Bahia de Todos os Sambas”, seu principal documentário de longa-metragem, celebra os históricos shows de música popular baiana que Saraceni registrou ao lado de Leon Hirzsman (1937-1987) em Roma em agosto de 1983. Lançado no Festival de Veneza de 1996, brilha mais em partes do que no todo, com momentos inesquecíveis como Caetano entrevistando Caymmi e João Gilberto entoando “Estate”.

Conheci Saraceni quando a edição inaugural do primeiro festival que dirigi, o Eurocine (1993-1995), sediou o lançamento paulista de sua autobiografia, no contexto de uma mostra especial sobre o diálogo entre os “cinemas novos” brasileiro e europeus. Entusiasmado com o projeto, ele tentou intermediar uma visita de seu amigo “Bernardo” (Bertolucci), que não se concretizou, e providenciou uma sessão em homenagem póstuma a outro parceiro italiano, Gianni Amico (1933-1990).

Depois de uma década e meia de encontros fortuitos, chegou a hora de enfim homenageá-lo, no É Tudo Verdade de 2009, pelo cinquentenário de “Arraial do Cabo”. Saraceni esbanjou carisma em duas mesas-redondas, na Cinemateca Brasileira em São Paulo e no Instituto Moreira Salles no Rio, mas transformou a reconstituição das filmagens de seu primeiro clássico sobretudo numa celebração de seu parceiro Mário Carneiro, morto dois anos antes.

Só então compreendi de fato outra frase de Glauber sobre ele: “Aprendi de tudo com meus amigos mas Saraceni me conduziu ao fogo do Cinema e do Amor”. 

Fonte: http://www.itsalltrue.com.br/periodico/coluna/coluna.asp?lng=